quinta-feira, 17 de setembro de 2009
DVD - 18 "ANTÓNIO NOBRE".
LEMBRAR O POETA!
António Nobre (Porto, 1867- Figueira da Foz, 1900) matriculou-se em 1888 no curso de Direito na Universidade de Coimbra. Desistiu de Coimbra e partiu para Paris, onde frequentou a Escola Livre de Ciências Políticas. Licenciou-se em Ciências Jurídicas. De regresso a Portugal, a tuberculose impediu-o de iniciar qualquer carreira. Ocupou o resto dos dias em viagens, da Suíça à Madeira, em busca de clima onde recuperasse. Obra poética: "Só" (Paris, 1892), "Despedidas" (1902) e "Primeiros Versos" (1921). Em prosa: Cartas Inéditas de António Nobre (1934), Cartas e Bilhetes-postais a Justino Montalvão (1956), Correspondência (1967).
AS RAPARIGAS DE COIMBRA
Bruna Meireles
A obra de António Nobre (1867-1900) está muito marcada pelas paisagens que conheceu, quer se trate do Douro interior e do litoral a norte do Porto, que conheceu na infância e na juventude, quer de Coimbra, onde começou estudos de Direito que prosseguiria a partir de 1890 na Sorbonne, em Paris. Diplomado em 1893, concorreu para um posto consular; não chegou a ocupá-lo por se encontrar já em luta com a tuberculose, que o levou à dolorosa peregrinação dos últimos anos de vida, entre sanatórios na Suíça, a Madeira, os arredores de Lisboa, a casa da família no Seixo e a do irmão Augusto na Foz (Porto), onde viria a falecer com trinta anos apenas. Estas circunstâncias não nos importam pelo seu teor biográfico, que tem aliás conduzido a leituras erróneas (nomeadamente, ler o Só à luz da doença, a qual só se viria a manifestar depois de publicada a 1ª edição do livro); estes factos interessam-nos, sim, por abrirem pistas para a atenção que a sua poesia concede ao real, descrito com minúcia e afecto, mesmo se à distância da memória e do sentimento de exílio, em todos os seus livros: Só (1892 e 1898), os póstumos Primeiros versos – 1882-1889 e Despedidas (além de abundante epistolário). O escasso número de volumes da obra não exclui que ela constitua um marco de referência da Literatura Portuguesa (à semelhança de outros autores de obra quase única, como são Cesário Verde e Camilo Pessanha). Trata-se, de facto, em especial no caso de Só, de uma obra emblemática em si mesma e do fim-de-século português, combinando a herança romântica com a estética do Decadentismo e do Simbolismo, que o poeta bem conhecia (como aliás a geração coimbrã a que pertence): a sobreposição desses modelos, o seu universo pessoal e o seu talento de poeta fazem nascer uma voz original, tecendo o sábio trabalho sobre os tipos de verso e de estrofe mais diversos, sobre o ritmo e formas poéticas clássicas como o soneto ou outras, com destaque para o poema longo e de construção dialógica (por exemplo, em “António” ou “Os figos pretos”). Do ponto de vista técnico, trata-se de uma poesia que parece muito próxima da oralidade, mas tal é desmontado quer por referências temáticas de requintada estesia, quer pelo uso de versos como o alexandrino e o decassílabo, a par de outras medidas, combinando com mestria ritmos sofisticados, ao modo simbolista, mas sem criar a opacidade que se pode ler em poetas seus contemporâneos (v.g. Eugénio de Castro), antes mantendo uma cadência cantabile, que qualquer leitor consegue acompanhar - o que não será alheio ao sucesso atestado pelas múltiplas reedições. Estes processos enquadram a construção de um sujeito dramatizado (especialmente visível no jogo de vozes em certos poemas) que se apresenta como narcísico e dândi, mas que, sob a máscara da ironia, esconde o pessimismo e o dolorismo de uma descrença individual que retrata a sua época. No centro desse mundo está um eu forte, escorado na memória das paisagens e das gentes que foram cenário dos tempos felizes, muito vívidos mas sem possibilidade de retorno; os poemas tentam combater essa decepção procedendo ao inventário dos bens passados (lugares, figuras, nomes, circunstâncias), tentando, pela presentificação e pela hipotipose, ancoradas numa memória fotográfica, combater a desaparição de tudo isso no abismo da lembrança. Assim, o sujeito lírico sobrepõe a voz presente com os ecos do passado - o seu, pessoal ou mesmo familiar, e o dos tempos ancestrais, que o fundam como indivíduo e como Lusíada, epítome dos feitos heróicos da História nacional. O eu cinde-se entre o adulto, António, e Anto, sua face ora infantil, ora dândi, representando-se como herói e protagonista mas também como outro, distante de si, numa antecipação do eu fragmentado que os poetas modernistas viriam a trabalhar mais fundamente. O sujeito assume a carga simbólica de ser um avatar do povo português, o que virá a prolongar-se no protagonista do poema inacabado “O Desejado“ (in Despedidas): Anrique, nome arcaizante, corporiza uma variação sobre o mito sebástico, pondo o mito em ruínas ao espelho do Portugal do fim de oitocentos. Herói derrotado, António é, no Só, o Princípe fadado para ser “poeta e desgraçado”, narciso marcado pela memória deceptiva de tudo o que foi e não volta mais, só face a si mesmo e à sua excepcional condição de visionário.
Cantiga de Homenagem a António Nobre
Canta Cristina
Uma leitura cuidada do Só mostra bem que a pretensa ingenuidade visível a uma primeira leitura é um logro: além do que no plano técnico atrás se assinalou, para isso contribui muito o labor poético visível no confronto entre as duas edições feitas em vida de António Nobre, em 1892 e em 1898, não deixando dúvidas a muito detalhada elaboração que sustenta esta poética e o seu universo de motivos, de símbolos e de mitos. De estrutura muito mais complexa que a da editio princeps, a 2ª edição (1898), edifica perfeitamente o perfil mítico da personagem António / Anto na leitura sequencial dos poemas: o prólogo “Memória” narra o nascimento mítico-simbólico do eu, seguindo-se-lhe três secções que desenvolvem a sua história em torno da paisagem rural, paraíso da inocência, e da Lua, astro especular da melancolia do sujeito; depois vêm as elegias e os sonetos, desenvolvendo ramificações dos poemas precedentes; enfim, o livro fecha com o longo poema, em duas secções, intitulado “Males de Anto”, fazendo a primeira delas a recolecção dos elementos essenciais do universo do eu (no passado feliz e no agora da agonia), sendo a segunda um diálogo paradramático (em pastiche do Hamlet, de Shakespeare) que conduz, em clave de aparência risonha, ao seio maternal e anterianamente divino da Morte.
Muito ousada para a época, a sua obra foi lida por alguns como nacionalista e tradicionalista, mas essas leituras estão hoje bastante relativizadas, valorizando a crítica mais recente aspectos como aqueles que acima se repertoriam. Não se trata de uma obra solipsista e ensimesmada, antes de representar um universo interior e um Portugal que epitomizam o sujeito finissecular e que expressam uma crise de valores que em breve, historicamente, há-de trazer mudanças de vulto. E é sobretudo, como já se esboçou atrás, uma das pedras de toque na gestação do sujeito moderno: a memória não permite recuperar o que se perdeu, os heróis parecem condenados à derrota, e Narciso tornou-se uma figura deceptiva; em lugar dessa felicidade perdida, o poeta visionário ergue a forma possível de resistência à ruína – a edificação da Obra, assegurando a permanência do seu nome e a do país que com tanta subtileza soube retratar.
Novelas17 de Setembro 2009
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